And I don't believe in the existence of angels





Ela contou-me que quando era miúda costumava sentar-se no chão da varanda de casa, com as pernas para o lado de fora e que ficava horas a observar as pessoas a passar na rua. A vida dentro das suas pequenas vidas fascinavam-na interminavelmente. Muitos anos depois ela perdeu o ar de miúda com sardas e transformou-se numa bela e fogosa mulher morena, dona de curvas bem assentes em lingerie preta. Continuava a ter sardas (apesar de agora com o uso de maquilhagem ser preciso uma aproximação mais pessoal para as contar a todas) e continuava a gostar de observar pessoas. Mas desenvolvera outras capacidades. Era muito profissional, num meio competitivo ainda por cima. Cativava atenções mas abria menos o jogo. Fora magoada algures. Talvez por isso aquele simples detalhe da sua infância, partilhado comigo nos lençóis da minha cama, me tenha chamado tanto a atenção. Na verdade, aquele detalhe levava encriptado outro, chamado intimidade.

(Eu devolvi alguns episódios meus, como por exemplo travessuras malvadas que aplicava sem vergonha à minha irmã, a Lindinha, quando ela era criança e eu, sendo um pouco mais velho, me podia dar ao luxo de gerir a verdade ao meu gosto.)

Por vezes os amantes desenvolvem uma peculiar comunhão entre si, feita de segredos e palavras trocadas em voz baixa, e deixam - sem se dar conta - de ser meros amantes para se tornarem propriamente um casal. A larva que se transmuta na borboleta? Isso numa relação de amor chama-se intimidade. Há muitos dossiers que formam a vida de um casal: o sexo, a harmonia intelectual, os valores éticos, o tipo de carreira profissional, o dinheiro e a forma de ver o dinheiro, a concepção de família e respectiva concretização, a saúde, o destino de férias no Verão, etc. De todos, na minha opinião (de quem já esteve várias vezes solteiro, "casado" ou em encontros de "caça furtiva"), o capítulo mais decisivo é sempre a intimidade. Um casal com forte intimidade pode falhar mas tem a matéria-prima mais preciosa, precisa menos de trocas. Pode dar-se ao luxo de funcionar mal em muitos dos outros factores que continua a ter a maior probabilidade de chegar longe, de ter uma vida de afecto, solidariedade e apego significativo ao outro. E é por isso também que as opiniões de terceiros sobre relações não aproveitam a ninguém. Um casal deve viver de dentro para fora, e o "dentro" começa na intimidade. Quando eu vejo um casal muito diferente entre si (por exemplo, nos níveis económicos, de beleza física, culturais, educacionais, etários, etc) a minha primeira reacção é pensar "devem ter uma forte intimidade". En bref, podem esquecer-se muitas das pessoas que passam nas nossas vidas e até nos nossos lençóis, mas nunca se esquece uma intimidade. Eu lembro-me de ti todos os dias.


Not to touch a hair on your head
To leave you as you are
And if He felt He had to direct you
Then direct you into my arms

Nick Cave
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