Daniela

Pelo fim da polícia literária

Eu estava em uma aula de estudos literários no semestre passado, lá no Instituto de Letras da UFRGS, e além de sair pensando muito sobre o tema da aula – uma discussão sobre valor estético e cânone literário – também refleti bastante sobre a fala de uma colega durante a aula.

Estávamos no momento do debate em que uma espécie de jogo foi instituído e alguns colegas precisaram “convencer” o professor a ler um livro, qualquer livro. As respostas eram então listadas em forma de tópicos no quadro e os argumentos seriam utilizados ao lado de outros pré selecionados pelo professor para refletir e compreender um pouco melhor o tema da aula, ou seja, o que constitui o cânone. Pois então, para contrapor uma visão de que muitas pessoas selecionam suas leituras dentro do cânone pela satisfação, para sentir-se bem, para experienciar uma certa catarse, relaxar, ou seja, um certo sentido místico da leitura em si, a colega em questão prontamente falou: – “Eu acho que esse tipo de pessoa não iria ler literatura para relaxar, para sentir-se bem. Ela leria Zíbia Gasparetto”. Depois da resposta do professor a guria ainda não estava contente e ainda citou Bridget Jones para reforçar seu argumento: – “Esse tipo de pessoa não lê literatura pra isso, vai escolher no máximo Bridget Jones”.

O professor então pergunta: “Bridget Jones não é literatura?” – “Não”. – Responde ela. – “Zíbia Gasparetto também não?” – “Não”. Como bom provocador, o professor cita que, uma pessoa pode chegar em casa e relaxar lendo fernando pessoa. Prontamente a colega diz que não. Que é preciso ter um esforço para ler, para entender, que com essa atitude de leitura não é possível captar a obra. Esse tipo de ato de leitura, segundo ela, só é valido para alguns livros, outros podem ser lidos de qualquer forma, e de preferência que não sejam lidos, por que não são literatura. Historinha finalizada, Isso me deixou profundamente incomodada.

Motivos:

Não é de hoje que muitos leitores acreditam estar um patamar acima dos pobres mortais que não compartilham o “gosto pela leitura”.E isso é um problema, porque ao invés de aproximar as pessoas dos livros, as afasta ainda mais. Quem gostaria de ser um arrogante “sabe tudo”? É obvio que ler é maravilhoso e possuir esse hábito traz muitos benefícios para o indivíduo e cria inúmeras possibilidades de ver/ler/enfrentar/compreender/opinar sobre/transformar a vida. Mas esse hábito não existe na mesma proporção, nem é igual ou tem os mesmo significados para todo mundo. É preciso ter algo em mente: todos nós lemos. São o que lemos, como lemos, por que lemos que variam de pessoa para pessoa. “O problema” é que as pessoas não leem o que alguns acham/definem que elas devem ler, nesse caso, quem precisa de mais leitura (de mundo) são esses alguns!

Sujeitos com “pouca instrução formal” não são incapazes de ler Crime e Castigo, por exemplo. Pelo contrário, elas terão uma leitura completamente diferente daquela feita por um Doutor em Literatura, um médico, um professor, ou um russo! E isso é maravilhoso! De um anúncio de jornal ou um post no Facebook ao cânone literário, tudo é passível de ser lido por qualquer pessoa. Somos livres para escolher o que precisamos ou desejamos ler. E, principalmente, qual será a finalidade dessa leitura. Nesse sentido, o que esses seres iluminados desejam não são mais pessoas lendo ou que leiam mais (se é que eles realmente querem deixar de fazer parte de um restrito grupo de prestígio) e sim que elas leiam as coisas “certas”.

Não bastasse a atribuição de valor àqueles que leem e aos que “não leem”, existe uma tendência entre certos grupos, de defender ferrenhamente a ideia de que só possuem valor aqueles que compartilham do mesmo gosto (não só pela literatura, mas pela música, pelo cinema, etc.) que o deles. Se é funk, é ruim e quem gosta é (para sermos delicados) idiota, ignorante, pobre, incapaz intelectualmente. Se é rock (não qualquer rock, é claro) é bom. Se é sertanejo, é ruim, se é MPB é bom. A moda agora é desqualificar os livros ditos para adolescentes. Mas já foi moda (e ainda tem bastante gente que faz isso) desqualificar autoajuda, livros espiritas, best seller, entre outros. Isso nada mais é do que um preconceito tão besta que chega a dar nojo.Esse tipo de atitude tem nome, é preconceito literário. Tem

um vídeo ótimo do canal Capitu Já Leu (saudade dos vídeos…) que fala sobre isso. Aliás, tem muita gente bacana falando sobre o assunto no Youtube.

Preconceito é um fenômeno social tão antigo quanto a humanidade. Temos a tendência de julgar os outros (seus atos e preferências) de acordo com nossos padrões, nossas verdades. E para alguns, as próprias verdades precisam ser, obrigatoriamente, veneradas pelos outros. O preconceito, de qualquer tipo, é extremamente perigoso, pois exclui e violenta quem não segue (ou não se enquadra em) determinados padrões estabelecidos por determinados grupos sociais. Criticar uma obra por seus méritos ou problemas (de qualquer espécie, sejam eles estruturais, formais, etc.) não é a mesma coisa que julgar quem lê essa obra. Eu tenho todo o direito de gostar ou não gostar de alguma coisa, e meu gosto não me faz melhor do que ninguém. Não tenho direito de julgar as pessoas que gostam daquilo que eu não gosto como seres inferiores, e nem de colocar em xeque a inteligência delas. Nossos padrões, valores e verdades não são únicos e nem são melhores que os padrões, valores e verdades dos outros. Temos que parar de achar que só o que a gente gosta é cultura.

E se não bastasse o grupo dos que dizem o que eu tenho que ler, agora me aparece essa, querem ditar como eu devo ler. Está instituída de vez a Polícia da Leitura. E ela está a solta. Ela tem a tarefa de proteger o “bom leitor” e combater o “mau uso da literatura”. Nada de ler por diversão. Isso só é permitido com “baixa literatura”, aquela que está no limiar, que quase não pode ser chamada de literatura. Ler é tarefa árdua, feita apenas para enobrecer o espírito, de forma compenetrada e com muito esforço. Apenas para adicionar ainda mais conhecimento nas mentes brilhantes dos leitores. Não está permitido se misturar com a “gentalha que não lê”. Não está permitido sentir prazer lendo Proust ou aprender lendo Harry Potter. Parece piada, mas e o que muita gente anda pensando por aí. Estou cansada do argumento de que as pessoas não leem, cansada de ver julgamentos de valor baseados naquilo que as pessoas leem. Apenas parem! Cuidem de suas leituras, incentivem outros a ler, mas sem emitir juízos de valor das pessoas e/ou dos livros.


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