Message in the bottle





Cruzámo-nos num velório aqui em Lisboa há umas semanas. Ela, querida R., estimada amiga, tocou-me no ombro e disse-me qualquer coisa em voz baixa. Não percebi exactamente as palavras proferidas mas imediatamente pressenti, algures por entre o seu estilo reservado e voz baixa, que algo não estava bem. Não podia estar bem. Olhei para ela por instantes - estávamos rodeados de muita gente, a morte pode ser um espectáculo concorrido - e achei-a logo excessivamente magra. Continua uma mulher bonita mas com menos glamour, possivelmente menos motivos para rir (uma mulher sem riso é como uma flor sem vaso ... se todos apostássemos nos que nos fazem rir, certo?).

Percebi a mensagem - dois amigos há tanto tempo, pessoas do mundo, percebem certas coisas só com um olhar - ainda que não antecipasse aquela abordagem. Não ali, naquele momento. E não comigo ... a R. tem amigos mais próximos do que eu. Mas depois ocorreu-me. Sempre tivemos uma forte base de confiança pessoal, já conversámos os dois horas a fio, e quando há confiança pessoal, podes até já não ver aquela pessoa há meses, mas sabes exactamente a plataforma onde vais aterrar a tua nave. O adn de uma pessoa não muda e se confias em alguém, mesmo que discordes, vais continuar a confiar. Por vezes, mais vezes do que parece, vais preferir inclusivamente falar com alguém em quem confies mas que intencionalmente não seja do círculo próximo, imediato ... esses já têm uma opinião formada, sem qualquer probabilidade de ausência de julgamento. A R. achou que se não fosse ali passariam vários meses sem nos vermos de novo e vários meses pareceram-lhe ondas demasiado altas para quem já está em alto mar. Por instinto, acredito, sentiu que precisava de mandar ali o seu sinal de vida.

Combinei que lhe ligava (um velório não é propriamente o melhor momento para trocar impressões) e uns dias depois convidei-a para almoçarmos os dois. Apanhei-a no escritório, fomos a um Sushi ali para os lados do Saldanha. Para além do resto, a R. é uma executiva de sucesso, partner numa grande empresa, onde trabalha muitas horas e é amplamente respeitada. "Obrigado por teres vindo. Sempre soube que eras assim". Como quando nos sentávamos no meu antigo Peugeot 306 no parque de Direito, falámos muito tempo. Geralmente por entre risos, mesmo quando o assunto era tragédia humana. "Lembro-me quando andavas com uma mulher mais velha, durante uns tempos andaste com uma que eu lembro-me, e depois passaste a aparecer com mulheres mais novas". (Já todos fomos tantas coisas, R.. Nem sempre por vontade própria, eu pelo menos talvez tivesse preferido outra coisa para mim, luto - tal como qualquer outro - pela pessoa certa, suponho). 15 anos de amizade dão para tantas odisseias, esta vida é à base de experiências, no final todos teremos aprendido com todos. De fora para dentro as vidas dos outros parecem muito melhores, detesto os que mantêm o desdém feito de certezas absolutas (em matéria de olhar para os que estão a passar).

Até que falámos expressamente do que lhe ía na alma, no coração, de como não está feliz, da ausência de respostas, de como lhe custa ultrapassar o tempo, de como quando chega esgotada do escritório se agarra à noite aos dois filhos menores como se fosse a própria vida que estivesse a fugir, de como as pessoas que amamos tantas vezes não são e não fazem o que gostaríamos que fossem e fizessem por nós. (E nós, somos? fazemos?). Foi como se eu desdobrasse o papel que estava dentro da garrafa e lhe perguntasse por olhar "o que é que vamos fazer em relação a isto?". Mas as exactas palavras que me saíram foram:

- Percebo, está tudo bem, R.. Não estás sozinha. Vamos pensar alto e tomar decisões concretas para sair daqui.

(Voltarás a rir, isso garanto-te)

  • Love
  • Save
    Add a blog to Bloglovin’
    Enter the full blog address (e.g. https://www.fashionsquad.com)
    We're working on your request. This will take just a minute...